sexta-feira, outubro 10, 2014

TELEVISÃO: “Quem te comeu fui eu”: liberdade e sexo para as negas


Claudia Jimenez e o quarteto protagonista da série: Lilian Valeska, Karin Hills, Maria Bia e Corina Sabbas.

“Quem te comeu fui eu! Quem tem a boca sou eu”, disparou Zulma (Karin Hills), aniquilando quaisquer pretensões de poder do parceiro Elder (Rafael Zulu) na mais nova série de Miguel Falabella, que vem dando o que falar. Só por essa frase, libertária, emblemática e significativa do poder e da afirmação do sexo feminino, já podemos constatar que “Sexo e as negas” está longe de ser machista ou racista, como foi acusada mesmo antes de sua estreia, na demonstração mais literal de pré-conceito a que já tive notícia.


Talvez pelo título abarcar dois temas sempre tabus em nossa teledramaturgia, sexo e negras, a série já sofreu um pré-julgamento antes mesmo de ir ao ar. O termo “nega”, dependendo da entonação, não tem nada de pejorativo ou depreciativo. É simplesmente uma questão de prosódia, sendo muito usado nos estados do Rio e da Bahia, presente em várias obras da literatura e letras de música que não sofreram tal patrulha da insuportável onda politicamente correta que assola nosso país. Que os "neguinhos" e “neguinhas” de Caetano nos resgatem!

Pois bem, o que os fiscais do politicamente correto temiam era que a série reduziria a mulher negra em mero objeto sexual, restrita a rebolar e a satisfazer o desejo do sexo masculino. Mas o que se viu na tela foi exatamente o oposto: mulheres lindas, inteligentes, poderosas, independentes, donas de si, senhoras do seu próprio destino, a exemplo das quatro brancas novaiorquinas de “Sex and the city”, inspiração maior da série de Falabella. O autor, nada mais fez, do que transpor o mote da série norte-americana para o subúrbio de Cordovil, adaptando para o universo de quatro mulheres negras e pobres, mas nem por isso, vítimas de sua condição. As quatro protagonistas da série trabalham em profissões variadas, são financeiramente independentes dos homens que se relacionam e, principalmente, são donas do próprio corpo, do próprio prazer e dos próprios desejos.

Não é a primeira vez que Miguel Falabella enfrenta esse tipo de patrulha sobre uma obra sua. Na novela, “A lua me disse” (2005), vários organismos em defesa dos negros protestaram contra as personagens Latoya (Zezeh Barbosa) e Whitney (Mary Scheila), pelo fato de serem duas negras que rejeitavam as próprias raízes e faziam de tudo para parecerem brancas. Mesmo com o contraponto da personagem Violeta, vivida por Isabel Fillardis, orgulhosa de sua etnia e cultura, a novela não foi poupada, sendo acusada de racista. Como se o preconceito só viesse da parte dos brancos e não estivesse enraizado em nossa cultura de maneira geral. Tolos, não entenderam que a novela prestava um inestimável serviço ao fazer uma forte crítica ao racismo enraizado em nossa cultura que, muitas vezes, vem exatamente de quem é vítima dele, até como um mecanismo de defesa, um modo de sobrevivência em um mundo, infelizmente, ainda dominado pelos brancos. Perdeu-se uma ótima oportunidade de discutir mais profundamente o tema, em prol do politicamente correto.

Outro argumento por parte de algumas pessoas que são contra a série é o fato de serem negras e não sentirem representadas por ela. Ora, mas um personagem negro tem que, obrigatoriamente, representar todo o conjunto de negros de nosso país, como se as pessoas não possuíssem sua própria individualidade e idiossincrasias, independente de sua etnia? Esse tipo de argumento é altamente nocivo para o próprio negro, uma vez que o segrega a um único arquétipo e nega nossa imensa pluralidade cultural e regional. Então o personagem negro tem que ser somente um único tipo, não pode ser vilão, tem que ser sempre o bonzinho ou a vítima? Quando Milton Gonçalves interpretou um político corrupto em “A Favorita” (2008), não faltaram críticas na época pelo fato de um personagem negro ser retratado como vilão. Já está mais do que na hora do negro se libertar dessas amarras e poder ser visto na teledramaturgia como indivíduo e não como um estereótipo, mas complexos, com contradições, qualidades, defeitos, podendo ser bom ou mau, fazer papel de mocinho, bandido, malandro, trabalhador ou o que quer que seja. Como gay, não acho que eu tenha que me sentir representado por todo personagem gay em novela. Não somos um bloco único e imutável. Isso faz parte da diversidade, da pluralidade. Somos negros, brancos, gays, héteros, mulheres, homens, jovens, velhos, ricos, pobres... Somos todos diferentes. Somos, sobretudo, únicos!

Portanto, muito obrigado, Miguel Falabella, pela ousadia e pela coragem de dar voz, espaço e protagonismo inédito a um grupo de mulheres que, não necessariamente representam todo o conjunto de mulheres negras do país, mas que representam, sim, um determinado grupo, de mulheres guerreiras, suburbanas, batalhadoras, maravilhosas, que experimentam a liberdade de serem quem são e enfrentam os preconceitos de um país paternalista que ainda não se acostumou com a ideia de que as mulheres podem tanto ou mais que os homens. Obrigado por nos brindar com o talento e a beleza de Karin Hills, Lilian Valeska, Maria Bia, Corina Sabbas e mais um grupo imenso de atores negros igualmente talentosos. E obrigado por não negar a liberdade sexual às mulheres pobres e negras e não restringi-la apenas às brancas novaiorquinas! Viva o sexo! Viva as negas! Viva a liberdade de criação!